Aqui o futebol é mais viril, o povo mais honrado, os homens mais virtuosos, as mulheres mais gostosas, a cultura mais cosmopolita e é onde o sol se põe mais bonito.
Quem atravessa o Mampituba – rio que faz fronteira entre o Estado e Santa Catarina - têm a missão de “cultivar as raízes” e jamais render-se ao carioquês. Rótulo que grudou em Elis Regina que replicava sabiamente “não vim ao Rio de Janeiro para abrir um CTG, vim pra ser cantora”.
Flertamos perigosamente com a perspectiva nós versus o mundo. Um desastre natural abalou a Nova Zelândia? Os jornais publicam o testemunho de um gaúcho, por mais inócuo que seja; As mulheres estão cada vez mais presentes no mercado de trabalho?! E tome reportagem de mulheres que assam churrasco “muito melhor que muitos machos por aí”; Escândalo da vez em Brasília? É mais importante buscar os gaúchos envolvidos do que discutir sobre o fato em si. Nosso imaginário social busca incessantemente identificar e valorizar dissonâncias com o resto do Brasil a ponto de forjar predicados: da “nobreza’’ dos ideais e desdobramentos da Revolução Farroupilha a uma terminação musical própria como a famigerada MPG (Música Popular Gaúcha).
Etc.. e tal. – sobre como a música gaucha se autofagocita.
Sigla oitentista a MPG nada mais é do que um neologismo para a MPB feita no Rio Grande do Sul, sobretudo em Porto Alegre. Surgiu como demarcação de fronteira com outra futilidade terminológica chamada Rock Gaúcho: de um lado Kleiton & Kledir, Nelson Coelho de Castro de outro Replicantes, TNT, Garotos da Rua.
Se olhassem acima da mureta de Mampituba seria fácil notar que à epoca já existiam termos bem definidos e consagrados: MPB e Rock brasileiro diferenciavam satisfatoriamente Osvaldo Montenegro de Plebe Rude. E quem alega que a necessidade de uma nova sigla vem da peculiariedade do ritmo gaudério esquece que a MPB, a partir de meados dos anos 70, tornou-se um mosaico de gêneros (samba, bossa nova, rock, jazz) que compartilham a letra em português, a presença do violão e a discrição da guitarra.
Há quem diga (coincidentemente os incautos da imprensa local) que o mercado musical gaúcho é grande o suficiente e as bandas daqui devem mesmo optar Opinião lotado do que se entregar as garras do mainstream se prostituindo por cinco minutos de playback no Faustão. Mas tchê! As inovações estéticas e experimentações são inerentes ao underground e não brotam somente no mármore velho da Lancheria do Parque, isto é, seja em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro ou Recife a cena local é fertil, ousada e representa a identidade local por default. Talvez, o que nos diferencie dos brasileiros seja a atenção que a imprensa local dedica aos artistas gaúchos - um grande mérito se o senso crítico vencesse o provincianismo, impedindo que bandas mais do mesmo como Nenhum de Nós tenham sucesso na proporção inversa de sua qualidade.
Jóia daqui, Nei Lisboa é um dos pilares da MPB produzida no paralelo 30. Eclético e polêmico - crítico do hermetismo dos CTG´s e da própria geração, alheio aos rótulos musicais - ao longo de nove albúns Nei flertou com rock, blues, milonga, frevo, balada, reggae entre outros generos.
Seu album de estreia lançado em 1983, Pra viajar no Cosmos, não precisa gasolina tem belas canções como a faixa título, Dooddy II, e as cannabis referentes Exaltalção e Síndrome de Abstinência; e momentos constrangedores como o frevo Me chama de Robert.
No entanto é em sua primeira incursão além do Mampituba que Nei Lisboa desfila um setlist inspirador, praticamente a sua obra-prima. Lançado pela EMI em 1988, Hein?! conjuga excelência artística, empolgação e tragédia pessoal em interpretações e climas difusos: Rima Rica/Frase Feita soa como um pedido de perdão (Muito obrigado por tudo/Pelo teu suor, pelos teus gemidos/E espero que a minha estupidez/ Cicatrize teus sentimentos feridos/Nasci e morro assim, só/ Perdido no escuro, dentro de mim), Hein?! é uma alusão aos perigos da fama e Teletransporte nº 4 fecha o albúm referindo-se diretamente a morte de sua namorada , Leila Espellet em um acidente de carro. Não há melhor release do que a do prórprio cantor:
Não há como separ ar o disco Hein?! da tragédia pessoal, da nossa precipitada viagem de carro em meio às gravações, da perplexidade de um acidente estúpido, da vida e da morte de Leila Espellet. Tal como uma longa e sinuosa curva da serra, a idéia inicial de um trabalho despretencioso e brincalhão se contorce e retorce em busca de uma explicação ou de uma repetição do tempo que a realidade não concede. As letras se distinguem e se embaralham entre o antes e o depois, tanto quanto me divido e certamente se dividem todos os que a conheceram. Talvez indecifrável para muitos, ainda que o disco permaneça cultuado por faixas como Faxineira, Fábula e Telhados de Paris, é para mim em Teletransporte que a inevitável arte de expiar a culpa alcança algum sucesso, com frases e imagens da própria Leila e apontando o caminho de lembrar da beleza e coragem do seu trabalho como designer de moda. O resto é silêncio, é retiro, piano de cauda aberta em um estúdio vazio.
Curiosidade: A recusa de Nei Lisboa em gravar uma versão, causou seu rompimento com a EMI pelos idos de 1988. Originalmente, a proposta era gravar uma versão escrita por Ronaldo Bastos (parceiro de Milton Nascimento e compositor de perolas pop oitentista como “Um certo alguém”) para a novela global Top Model. Porém ao entrar em estúdio a versão apresentada era de Rossini Pinto (versionista renomado da Jovem Guarda), Nei se recusou a gravar e Kiko Zambianchi imortalizou a infame versão de Hey Jude.
Pra viajar no Cosmos, não precisa gasolina (1983 - ACIT)
Hein?! (1988 - EMI)
01 - Zen (Vinheta)
02 - No Fundo
03 - Hein!?
04 - Nem Por Força
05 - A Fábula (Dos Três Poréns)
06 - Faxineira
07 - Baladas
08 - Rima Rica / Frase Feita
09 - Fim do Dia
10 - Telhados de Paris
11 - Teletransporte nº 4
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